terça-feira, 3 de novembro de 2020

Entrevista com o diretor Bernard Attal do documentário Sem Descanso

 












Semana passada publiquei aqui no blog  e no Canal a crítica do excelente documentário Sem Descanso, do diretor Bernard Attal, que será lançado em circuito nacional, dia 5 de novembro, nas salas de cinema. O filme relata uma história real, que expõe a atual violência policial, e mostra através de fatos a urgência deste tema ser debatido pela sociedade brasileira. Sem Descanso já participou em 18 festivais em todo mundo, inclusive na Competição Principal da Première Brasil do Festival do Rio 2019, e venceu quatro prémios: Melhor documentário no Black Montreal International Film Festival;  Melhor documentário no Fenavid Santa Cruz da Bolívia; Melhor longa no Araial Cinefest; Menção de excelência no Impact Doc Awards; Prêmio Vertentes de Cinema de Melhor Documentário do Festival do Rio 2019. O documentário foi produzido pela Santa Luzia Filmes e tem distribuição da Livres Filmes.

   


 O documentário mostra como Geovane, um jovem morador da suburbana de Salvador, Brasil, foi levado, em 2014, por uma viatura da Policia Militar em pleno dia. Depois de uma investigação conduzida pelo próprio pai e pelo jornal local, o corpo foi encontrado esquartejado e sete policias foram indiciados. A polícia brasileira é uma das mais violentas no mundo. As vítimas são principalmente os jovens negros da periferia das cidades. 

     Os casos são raramente elucidados e as famílias ficam na ignorância do destino dos seus filhos. Mas o pai de Geovane se recusou a descansar até descobrir o paradeiro do seu filho. A narrativa, de caráter investigativo, costura a trama e a procura das raízes históricas e sociológicas da violência policial. O documentário traz ainda um paralelo entre a situação da violência policial no Brasil e o movimento Black Lives Matter nos EUA. 

Abaixo vocês conferem as perguntas que fiz a ele após assistir ao documentário. 


1- No documentário Sem Descanso você foca no caso do baiano Geovane que foi vítima de violência policial em 2014. Porque essa história em específico lhe interessou e como você teve conhecimento dela?

 BA: Tive conhecimento através da matéria do jornal Correio que ficou acompanhando o caso durante semanas. É uma raridade hoje em dia um jornal fazer esse papel investigativo, geralmente por falta de recursos, e ainda mais indo contra parte da sua base conservadora de leitores.  Dessa matéria, nasceram outros fatores: primeiro, a coragem do pai Jurandy que resolveu enfrentar as autoridades públicas sozinho para achar seu filho e os responsáveis por sua morte; e segundo foi o fato que Geovane foi assassinado a mesma semana que Michael Brown nos EUA e de ver que as duas sociedades, a americana e a brasileira, reagiram de uma forma bem diferente. Fui no enterro de Geovane lá no interior, só tinha família, amigos, alguns repórteres. O estado não mandou ninguém para simpatizar com a dor da família. Nos EUA, milhares de pessoas seguiram o caixão do Michael, inclusive muitos formadores de opinião e artistas. Obama fez um discurso impactante. Quando voltei do enterro, com minha esposa e produtora Gel Santana, que foi criada perto do bairro da família do Jurandy, a decisão estava tomada. Precisávamos contar essa história.


2- Seu Jurandy, pai de Geovane, é o exemplo de muitos pais desse país, que por amor ao filho não mede esforços em busca da verdade. Em qual momento conversar com o pai do Geovane lhe marcou mais? 

BA: O que me marcou mais foi sua tranquilidade, seu senso do dever a ser cumprido e sua falta de ódio. Ele foi se expondo, arriscou a vida dele. Em momento nenhum, procurou se esconder, fazer justiça com suas mãos apesar da dor e das imagens que ficam na sua cabeça. Ele quer que justiça faça seu papel para Geovane, como ele mesmo cumpriu como pai e como cidadão. O pai de Michael Brown nos EUA recebeu indenização menos de um ano depois do assassino do seu filho. O caso de Geovane não foi à justiça ainda e Jurandy nem tem recebido uma marca de compaixão, uma desculpa dos representantes do Estado.


3- Em determinado momento do documentário o espectador tem a informação de que Geovane teve passagens pela polícia. Esses depoimentos referentes à essas passagens são inseridos somente após já sabermos que os policiais agiram incorretamente com ele. Você teve a preocupação durante  a montagem de primeiro informar o que era importante, ou seja, seu sumiço e a violência sofrida, para depois deixar o espectador ciente de que ele cometeu alguns erros? Sabemos que a sociedade costuma mudar o juízo que faz quando a vítima tem passagens pela polícia mesmo que não tenha nada a ver com o ocorrido. Como você lidou com esse assunto?

BA: Primeiro, fiquei impressionado o quanto Jurandy ficou honesto a respeito do assunto. Em momento nenhum, ele escondeu o passado do seu filho, nem arrumou desculpas pelo comportamento dele. Então nos também precisávamos ser transparentes. E posicionamos esse episódio durante a montagem precisamente para tirar o publico do seu conforto, dizer a ele: agora você sabe da barbaridade que a polícia cometeu contra Geovane. E se eu falo para você que Geovane teve passagem, você continua achando que bandido bom não é bandido morto, que a vida deve ser defendida a qualquer custo, que precisamos de uma relação de confiança com a polícia, ou no fundo você pensa que o crime se combate com mais crime? 


4- Os movimentos mundiais tem contribuído para que episódios como esse sejam denunciados e seus envolvidos presos. Qual você acredita que seja o papel do cinema nesse cenário?

BA: Infelizmente, raramente os denunciados e os envolvidos acabam sendo presos, nos EUA até menos no Brasil. Então, é sempre difícil avaliar o papel de um filme. Sabemos que ele impacta muito as pessoas que o assistem, tanto no Brasil, quanto no exterior. Mas sabemos também que existe grande resistência no Brasil para enfrentar este tema. Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) lá nos EUA, mas não tanto no Brasil, onde 79% das vítimas  da violência policial são os jovens negros de menos de 29 anos. Tivemos muito mais facilidade para entrar com  este filme nos festivais no exterior do que no Brasil. Então agora, fazemos de tudo para ampliar sua distribuição e sem ajuda de dinheiro público: lançamos agora no circuito comercial apesar do momento difícil, depois iremos fazer um lançamento dito de “impacto”, em parceria com o DOCSP / DOCSOCIETY, para levar o filme nas comunidades, nas escolas, onde não tem acesso fácil a salas de cinema. Vamos promover debates, tentar desenvolver ferramentas com nossos parceiros da OAB e de Anistia Internacional, para as famílias lidar com essas situações e suas consequências. Espero assim que essa noção que a violência policial é um mal necessário para lutar contra a criminalidade vai se corrigir, ser reconsiderada porque é falsa, e que as famílias das vítimas vão receber um suporte de verdade do estado e poder contar com uma justiça rápida. Os vários movimentos de Maēs através do país já tem conseguido muito. Queremos contribuir com essa luta.



Se você perdeu meu vídeo falando sobre o documentário, confira abaixo: 


2 comentários:

  1. Eu me recordo muito do documentário e a cada dia que ligamos a tv num jornal, a violência policial assusta.
    E não é só aqui não. A pandemia tem mostrado o pior do ser humano em muitos casos, infelizmente.
    Fiquei lendo a entrevista e imaginando ele ter que omitir a dor, principalmente na hora de falar com o pai do garoto.
    É preciso uma dose extra de sangue frio para não se emocionar.
    Puxa...
    Parabéns por essa entrevista maravilhosa!
    Beijo

    Angela Cunha/O Vazio na flor

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  2. Raffa!
    O bom é que o filme traz à luz um tema difícil e que as autoridades em todos os níveis, não quer abordar ou discutir e muitas vezes, a própria população, porque se sente sem respaldo.
    Adorei a entrevista e a coragem dele em abordar esse tema.
    cheirinhos
    Rudy

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